Thursday, September 13, 2012

A seguinte cena me ocorre:

Em uma loja de um shopping - seja uma loja de cobertores e travesseiros -, com paredes creme, vitrines brilhantes e luzes claras, como são as lojas de cobertores e travesseiros, nesta loja há um sofá - de couro, cor romã, como são os sofás destas lojas - ao lado de uma máquina de café para os clientes (a máquina não precisa de descrição, pois é igual a todas as máquinas de café para clientes).

Em meio aos clientes, que não são muitos, já que cobertores e travesseiros não são itens que "saem bem", um casal de pouco mais de trinta anos com um bebê. Presume-se que seja seu filho e presume-se que seja o único.

O casal aproxima-se da área do sofá e da máquina de café, onde há um aviso: "Prezados clientes, pedimos a gentileza de se servirem de café mas não levarem seus copos para a loja", assim mesmo, num português meio mal cuidado. Ali um deles se serve de café enquanto o outro saca uma mamadeira da bolsa e a aproxima do até então amável e sorridente bebê.

Aqui a cena passa a ser dublada:

Bebê: Chora, o que significa: Não quero!

Adulto 1: Toma, meu bem, sua mamadeira.

Bebê: Chora, o que significa: Pô, não quero, já tomei leite hoje!

Adulto 1: Tá na hora de mamar, não pode ficar sem se alimentar.

Bebê: Chora ainda mais, o que significa: Mas eu não tô com fome!!!

Adulto 1: Meu bem, só um pouquinho, o leitinho, vai.

Adulto 2, com um copo de cheiroso cappuccino à mão: Vai pequeno, toma a mamadeira.

O bebê, pára de chorar e pensa: Porra, que merda. Me dá essa porra aqui e vai se fuder, então.

A cena volta a ser descritiva.

O bebê aceita a mamadeira, enquanto os adultos se olham sorridentes. Três pequenos goles depois o bebê vomita e suja o sofá, e o adulto 1, enquanto o adulto 2 se assusta e derruba seu cheiroso cappuccino, espirrando café por toda a loja de cobertores e travesseiros, que tem paredes creme, vitrines brilhantes, luzes claras e, agora, chão grudento e produtos manchados.

Dublado e lacônico, o bebê pensa: Se fuderam. Até tentei avisar, mas quiseram fazer do jeito deles. Foda-se, bem feito.

O seguinte pensamento me ocorre: seria melhor se já nascêssemos com espírito de porco.

Saturday, September 08, 2012

Na antiga capital

Moro em um museu. Todos os dias saio de minha casa nos recantos esquecidos do antigo palácio e me dirijo a uma sala qualquer onde poderei passar o dia apreciando algumas das obras ali expostas sem que os visitantes se dêem conta de que estão, na verdade, invadindo meu lar. Há anos que não saio deste lugar e sequer sei como está a pequena cidade lá fora, que já foi a capital do meu reino e hoje é apenas um destino pitoresco para os governantes, que, aliás, não sei quem são.

Todos os dias me sento em um banco dentro de minha casa e ali permaneço até à noite, quando me arrasto de volta às minhas sombras antes que os seguranças me convidem a encarar a vida no mundo decadente e sem arte que existe para além das paredes. Meus companheiros durante o dia são desatentos e poucas vezes me perturbam, pois poucos se interessam pela presença de outra pessoa quando estão a cuidar de sua educação cultural, e assim um velho fedido e malvestido é apenas um excêntrico e não um recluso ex-ministro.

Meus companheiros são, porém, o que me mantém vivo, uma vez que é a eles que recorro, por cima de meu orgulho e vergonha, quando preciso confessar a alguém que moro em um museu; são eles que me trazem alimentos e não me perseguem até as estranhas em que me abrigo.

Até hoje nunca fui seguido e consegui os alimentos necessários e, por isso, ainda vivo em um museu. Até hoje.