Tuesday, May 04, 2010

Sobreviver

"Como o fino manto de cetim..."

"Seria uma forma pretensiosa de começar", pensou ele. Para perguntar-se, a seguir, se pretendia mesmo começar algo. Como se o houvessem advertido de que não são ruins as idéias, mas sua execução. Talvez alguém tenha dito que o passo inicial é o mais difícil. Talvez, não...várias pessoas disseram isto, para ele inclusive. Daí que uma referência tão grave o assustasse não pelo conteúdo, mas pelo desenvolvimento que mereceria. Afinal, deixar de se repetir nunca fora fácil, mas admitir a pretensão era algo novo.

Olhou para o guardanapo na mesa e olhou para a mesa, já bastante molhada, como se com o gelo derretido que escoria sobre ela não apenas seus pensamentos ficassem mais escorregadios, mas também seus desejos, e aqui incluíam-se os desejos por reconhecimento, se tornassem parte daquele melaço pegajoso e até mesmo fedido que insistia em se formar ali. Pode ser até que a insistência fosse sua em sentar-se ali, onde sabia que o curso da água (do gelo da garrafa para a mesa, daí virando água que se misturaria à sujeira e escorreria pelos vãos sobre sua perna e o chão de onde evaporaria como que para espantá-lo, para mostrar que nem ela - a água - estava aferrada àquele ou a qualquer outro lugar e que por isso ele deveria deixá-la em paz), o curso da água seria o único movimento. No guardanapo poderia, pois, escrever. Mas não na mesa. Estava novamente limitado à mera imagem da escrita. Desta vez por conta daquela minúscula camada de gelo. Minúscula.

""Como o fino manto de cetim"" continuou ""que deveria cobrir os ombros da virgem, o prazer de saber-se o guardião alheio torna-se dor por ser responsável por algo tão frágil.". Ou algo que parece tão frágil".

Gostou da palavra "alheio". Alheio à água que esfriava suas mãos, escorria em seus joelhos, molhava seus pés, e incomodava seu nariz. Que não lhe convencera que ele não estava aferrado àquele lugar.