Tuesday, July 10, 2012

Valeu

4 de Julho de 2012

Na guitarra-base, um Tom Waits.
Na guitarra-solo, um David Beckham.
Na bateria, um Érico Pedrosa.
No baixo, um Bob Dylan dos anos 80 com o visual de hoje em dia.
No teclado, um Aaron Eckhart.

O concerto estava marcado para começar às 19 horas. Ele e seu colega argentino chegaram um pouco antes ao local, mesmo sabendo que o horário de início não seria respeitado. Como iam ficar em setores diferentes se despediram e marcaram de se encontrar na saída do show para tomar o trem de volta. Ele ainda se lembrou de avisar que talvez precisassem adiantar as passagens de volta.

"Eu te entendo.", disse o argentino, torcedor do Independiente.

Já na fila, sozinho espremido, ele se lembrou de um dos grandes motivos porque sempre detestara eventos como shows: pessoas mal-educadas, grosseiras, individualistas, traficando influência e tratando aos outros e sendo tratados como animais. Os sorrisos de desprezo dos responsáveis pela abertura das catracas, enquanto do lado de fora as pessoas tentavam continuar a se empurrar, foram uma imagem marcante, que lhe trouxe à mente em um instante a ideia de dispositivos psicanalíticos de exercício do poder, traduzida no desejo de pisar no rabo de um cachorro.

Já dentro do parque onde seria a apresentação, os boatos indicavam que o atraso, em média, é de 40 minutos. Para suas contas, este seria um bom tempo, pois com um show de uma hora e vinte minutos poderiam voltar à estação central às 21 horas e tomar o último trem de Bonn para Frankfurt às 22:14, chegando em casa por volta da meia-noite.

Às 19:40, de fato, tudo parecia pronto, após impressionantes seis trocas da lista de músicas que serão tocadas, que músicos têm à sua disposição coladas no palco. Os assistentes de palco, porém, voltam e começam a discutir sobre uma cortina cobrindo os canhões de luz. Um deles escala a estrutura do palco e começa a lentamente remover a cortina. A operação dura quase 15 minutos e o show começa às 20 horas em ponto.

Uma hora e cinquenta depois, ao final da apresentação, ele pensa que, se correr à estação, ainda há uma chance de pegar o trem. Comunica o desejo a seu colega, de correr ao metrô e à estação, de ainda tentar. Este topa.

"Eu te entendo.", diz o argentino, torcedor do Independiente, um dos maiores clubes de Buenos Aires.

Mas não entende, pois pára para comprar uma camiseta e tirar uma foto do belo pôr-do-sol no Reno. Tudo está perdido, mas se o trem estiver atrasado ainda há uma chance e ele avisa que comprará a passagem de qualquer forma. Deus é brasileiro, dizem, e é uma mulher negra, dizem, e o trem estava atrasado em vinte minutos. Eles tinham três minutos para comprar as passagens e correr à plataforma. Ele diz a seu colega que vai comprar as passagens e que o encontra na plataforma, segurando o trem (sim, eles são latino-americanos, a ideia parecia fazer muito sentido).

A máquina é lenta. Ele precisa realizar passo a passo a compra dos bilhetes. Põe o cartão errado; o cartão de crédito é recusado; ele pega o dinheiro; o ticket está sendo impresso, o troco já vem, três minutos, com licença na escada rolante, o trem parado, um grito na plataforma - "Aqui!" -, o barulho das portas do trem, ele corre, o trem começa a andar ainda com aquela porta aberta, ele acena com o ticket e grita "Por favor!" para a comissária que olha com incredulidade e não entende português (a maldita mania dos seus colegas latino-americanos de falar em espanhol com ele sempre faz com que ele diga coisas espontaneamente, e não em alemão) e nem se importa enquanto o trem parte.

Ele se pega socando o chão enquanto grita "Scheiße! Carajo!" sob olhares de pessoas da plataforma oposta.

Não, o colega argentino, torcedor do Independiente, um dos maiores clubes de Buenos Aires, sete vezes campeão da Libertadores da América não entende.

Eles vão em busca de informação. Ele já olhara na internet. Agora os trens para a estação de Frankfurt só chegarão às 4 da manhã no destino. Chegar em casa, só depois das cinco. Mas deus é brasileiro, dizem, e gostosa, dizem, e ele não acredita em nenhuma das três coisas. Mas ele acredita que ainda não é muito esperto, mas também não muito azarado, quando a mal-humorada funcionária da estação informa que, sim, há um trem que chega em Frankfurt, no aeroporto, à 1:54 da manhã.

Eles decidem ir, mesmo sabendo que não haverão mais ônibus circulares ou metrôs para casa. Têm uma hora para fazer algo em Bonn. Mais tarde ele pensará em como a frase "Cara, preciso de uma cerveja." ficará pra sempre associada a esta cidade em sua mente, talvez porque, em todas as ocasiões, foi uma necessidade física, com uma segurança frente ao risco de não conseguir mais pensar.

No trem da 00:07, que também tem um atraso de cerca de quinze minutos, é impossível achar um lugar nas cabines, de modo que se alojam nas cadeiras para leitores, que viajam com a luz acesa durante a noite, impedindo qualquer soneca. Quando chegam ao aeroporto de Frankfurt, poucos minutos após as duas da manhã, procuram pelas informações no painel. Trens para Hamburgo, Munique, Basel e nada para Frankfurt, ali ao lado.

"Às 4:25, o próximo. Leider." informa o policial, sem pensar no quão doído foi aquele infelizmente. Ainda que deus não exista e o brasil estivesse longe, havia uma garota negra ali, pedindo a mesma informação. "Deus são os outros", ele pensará depois, "quando não está numa fila.". Com sorte o táxi dividido em três não seria caro. E, com a sorte dos campeões, o valor cabia no bolso. Por outro lado, ele teria que descer e andar cerca de vinte minutos até seu apartamento, além de encarar os quatro lances de degraus.

No caminho, passam pelo primeiro Pub. "Cara, preciso de uma cerveja e preciso comer alguma coisa!". Ele abandona a ideia. Descem do táxi, se despedem meio correndo. Seus parceiros de corrida podem pegar um ônibus, ele não. E ele tem pressa.

"Eu te entendo.", diz o argentino, torcedor do Independiente, um dos maiores clubes de Buenos Aires, sete vezes campeão da Libertadores da América, maior campeão da história do torneio.

Na corrida para casa, ele tem a impressão de ter se perdido, mas, como não existe deus, ele tem que confiar em seu senso de direção e segue pelo caminho que imagina ser o melhor. É. E ele encontra o segundo Pub. "Cara, preciso de uma cerveja e preciso comer alguma coisa e preciso me lavar". Mas ele abandona a ideia. Está a caminho de casa, corta caminho pelas praças, meio de ruas, corre pelo trilho dos bondes (até que as pedras machuquem seus pés - e, aqui, num momento de razão, ele pensa que isso de andar pelos trilhos nem traz tanta vantagem assim, mas faz uma graça) e, a cinco minutos de casa, cruza com o ônibus noturno que poderia ter tomado ao saltar do táxi. Claro, deus não existe, mas se existisse seria um filho da puta.

Mas tudo bem, tem que ser sofrido mesmo, alguns dizem. Em algum momento tem que haver sofrimento, antes, durante ou depois.

E depois ele pensará em seu colega argentino torcedor do Independiente, um dos maiores clubes de Buenos Aires, sete vezes campeão da Libertadores da América, e ainda o maior campeão da história do torneio e dirá "Eu te entendo!".

Porque ele chegou em casa às 2:43.
Valeu.

***

Com a banda, em Bonn, nos vocais, estava Bob Dylan.
Em São Paulo, o Corinthians ganhou a Libertadores.

***


E estas coisas, agora, voltam a fazer parte daquela normalidade que vai nos engolindo a cada dia.


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