Tuesday, July 28, 2009

Vida após a morte

Estranhamente as pessoas pararam de morrer.

Ao contrário do que acontecia no restante do mundo, naquela cidade ninguém mais morria já há algum tempo. Um grande tempo, na verdade. Ninguém desconfiara no começo mas, dada a natureza perecível da vida humana, em algum momento o fato passou a ser notado. A princípio com satisfação e um certo espanto - afinal, todos se perguntavam quem seria o próximo primeiro, fazendo apostas em que ninguém acreditava e nas quais todos solidarizavam-se com o outro.

De fato, nos primeiros meses nada parecia muito anormal, pois poderia, sim, ser uma mera coincidência o afastamento da morte. Ora, não sendo um local que onde a fome e a violência estavam constantemente presentes, também não seria demais que as doenças se afastassem por algum tempo. Mesmo a velhice e o apodrecimento, se não os morais pelo menos os físicos, poderiam ser evitados com algum esforço e um pouco de sorte. Talvez o maior problema com que a população se preocupasse fosse justamente o fato de que, afastada a expectativa de que, em algum momento, deveriam pagar por seus pecados, estes pudessem ser praticados com ampla liberdade. Quando lembravam-se, contudo, de que, pela primeira vez, não apenas em suas vidas mas também em quase toda a existência humana, tudo era permitido, a própria possibilidade do retorno do Juízo lhes parecia um erro ainda maior.

Não que a convivência tenha-se deteriorado no decurso dos anos. Sendo um povo que conseguira evitar a presença da fome e da miséria, a liberdade não representava grande risco à sua integridade. O quê não significa dizer, é verdade, que fosse uma convivência feliz. A melhor forma de dizer algo sobre o acontecido era apenas: "Estranhamente as pessoas pararam de morrer". Nenhuma mudança adicional. Além do natural envelhecimento e do crescimento populacional, é claro, mas estes eram problemas facilmente contornáveis pela aptidão da comunidade à boa vida. O fato de ninguém deixar de estar presente não se tornou um problema, pois todos sabiam utilizar bem o lugar em que viviam. Não havia qualquer circunstância social que viesse a ser um problema novo. E quanto àqueles pré-existentes, com mais tempo de vida, a possibilidade de resolvê-los apenas poderia crescer.

Lustros, décadas e bodas e mais bodas adicionais, no entanto, tendem a ser tediosos. Não pelo fim da diversão. Pois esta pode ser criada em todas as circunstâncias, assim como a excitação e o prazer. O medo, contudo, não pode. E nem a sensação de que a perfeição é falha pode ser bem expressa. Muitos anos depois do fim da morte, o povo da cidade já se esquecera da primeira sensação. E não podia sentir a segunda.

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"I held the blade in trembling hands
Prepared to make it but just then the phone rang"

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Realizações nascem do real, de seus caminhos e desenvolvimentos. Nascem da vida do tempo, que é, afinal, a humanidade. Se não há mais mortes é porque a cidade construiu uma vida sem morte. Se a vida lhe pertence, se o Juízo foi superado, se o medo desapareceu, foi porque puderam fazer com que tudo isso se realizasse.

Se não havia, porém, outra alternativa não seria porque erraram em algum momento?


Thursday, July 02, 2009

Concorrências

"Está claro que tudo tem de morrer, mas há gente que, enquanto vive, tem a construir a sua própria felicidade, e esses são eliminados. Perdem a batalha pela sobrevivência, não suportaram viver segundo as regras do sistema. Vão-se como vencidos, mas com a dignidade intacta, simplesmente dizendo que se retiram porque não querem este mundo" José Saramago.

O que, no fim das contas, é bem confortável.

Ser moralmente bom em um mundo falido, manter a dignidade intacta ao custo da participação em um mundo qualquer, no qual felicidade e infelicidade são possibilidades e não rivais ou, finalmente, optar pela pureza do ideal não deixa de ser uma forma de reificar a resignação. Ao contrário disso, como ensinava Ibsen, talvez seja menos importante vencer indo-se como vencido do que ficar como a experiência da derrota.

Uma fratura na falsidade pode, assim, significar mais do que um símbolo da verdade.